domingo, 19 de abril de 2020

As lápides da Ponte Velha de Algés

Fotografia de Eduardo Portugal anos 50


"E eis-nos chegados à ponte que a Câmara de Lisboa fez construir em 1608 por conta do Real do Povo, mercê dos esforços e da tenacidade de um arrábico, que levou muitos anos de vida exemplar no convento de São José de Ribamar, chamado, em religião, frei Rodrigo de Deus."
Mário de Sampayo Ribeiro
"Da Velha Algés"
Separata do Boletim Cultural e Estatísco da Câmara Municipal de Lisboa
Volume 1 - nº 3, 1938



Fotografia sem autor, anos 40


Mário de Sampayo Ribeiro (cuja obra acima referida admiro particularmente) menciona em
"Da Velha Algés"  o detalhado relato sobre a construção da Ponte Velha de frei António da Piedade sobre a Ponte Velha de Algés, o qual passo a publicar abaixo :




 Joaquim Boiça, reputado historiador da região de Lisboa também nos trás um excelente texto referente a esta temática:

"No início do ano de 1848, numa publicação periódica lisboeta, a «Revista Popular», semanário de «Literatura e Indústria» que se fazia acompanhar de «gravuras originais em madeira executadas por artistas nacionais», foi impressa a que reputamos ser a mais antiga representação da desaparecida
Ponte de Algés, construída em 1608.
 A gravura, de um artista não identificado, possui indiscutível valor iconográfico e documental. Com um traço vigoroso e razoável rigor representativo, revelam-se as características construtivas da velha ponte, que possuía um só arco, de volta perfeita, com o tabuleiro de circulação a acompanhar a sua
modelação e alçado marcado por pilaretes e pináculos, solução que emprestava uma maior elegância formal ao conjunto. O enquadramento paisagístico, próximo e longínquo, revela a vegetação que brotava junto à ribeira, o muro delimitador e um renque de árvores da quinta dos duques de Cadaval,
na margem esquerda, e uma casa, em posição travessa, na margem direita, e, servindo de ponto de fuga de toda a composição, dois moinhos nos cabeços de Linda-a-Velha (*).
 Para lá da realidade representada, de meados do século XIX, que não diferiria muito da do tempo da fundação da ponte, a gravura encerra outras dimensões. Evoca a memória histórica de uma época em que as ribeiras, mais ou menos caudalosas, que rasgavam o território oeirense e juntavam as suas águas às do Tejo começaram a deixar de ser obstáculos à circulação de gentes e de mercadorias que «das partes de Cascais, Oeiras e outros lugares » pretendiam ir à capital (Frei António da Piedade, Crónica da Província de Santa Maria da Arrábida…, 1737) e evoca a acção determinante de um
frade de Santa Catarina de Ribamar, Frei Rodrigo de Deus, que obteve junto da Câmara de Lisboa a autorização e os meios indispensáveis à construção das três pontes que passaram a servir o então Reguengo de Algés (sobre as ribeiras de Algés, Linda-a-Pastora e Laveiras). Evoca, por outro lado, uma paisagem natural e construída há muito desaparecida, seja a que a gravura reproduz, numa atmosfera vincadamente bucólica e pitoresca que sensibilizou outros artistas, como o rei D. Carlos (desenho a carvão, de 1886, muito pouco conhecido, da «Ponte de Algés»), seja a que, num registo histórico evolutivo, emerge em inícios do século XX, em que junto à ponte, qual fronteira, surgem as chamadas «Portas de Algés», de controlo alfandegário e policial, um moinho «americano», outras duas pontes e construções urbanas que o tempo também acabaria por consumir. Evoca, ainda, mil e uma estórias e vivências, que aqui, necessariamente, ficam por contar."




UMA DESCOBERTA OCASIONAL




De facto este mundo tem coisas do "arco da velha"...
 Andava há anos em busca das lápides da antiga ponte velha de Algés e depois de muito procurar, pesquisar em arquivos e após diversos contactos para a CMO e CML, cheguei à triste conclusão de que teriam eventualmente desaparecido para sempre perdidas algures num meandro camarário, a verdade é que nenhuma entidade, obra ou arquivo me conseguia explicar onde teria sido depositado tão grande pedaço da história algesina.
 A ponte velha de Algés foi construída em 1608 e demolida nos anos 40 do século passado aquando do encanamento da ribeira, desde esse acontecimento que nunca mais se soube do seu paradeiro, até que ...

 O ano passado de visita ao Palácio Pimenta, onde esta instalado o museu da cidade de Lisboa, a propósito de ver pessoalmente algumas peças e os jardins, aproveitei e visitei a exposição permanente sobre a história de Lisboa.  Uma vez que foi a primeira visita que efectuei, sentia uma lógica curiosidade sobre o que iria encontrar naquelas salas. Ao entrar na primeira sala, parei no centro para efectuar uma vista geral ... louças de várias origens e vidros descobertos na Casa dos Bicos e no campo das Cebolas, alguns magníficos painéis de azulejo retratando a Lisboa pré terremoto de 1755, sinos de antigas igrejas lisboetas e alguns pedaços de edifícios retirados dos escombros do terremoto ... de repente algo me chamou a atenção, junto à entrada perto de mim, duas lápides uma com o brasão da cidade outra dizendo "A CIDADE MANDOU FAZER ESTA PONTE NO ANO DE 1608"... ao ler estas palavras quedei-me entregue a uma imensidão de pensamentos em catadupa, seria possível que, aquelas sejam as lápides da ponte Velha de Algés que há anos procurava e que ninguém sabia onde se encontravam? Eram idênticas em tudo, mas sabendo eu que a cidade de Lisboa mandou construir diversas pontes nesse ano, pelo menos três no concelho de Oeiras e outras tantas em Lisboa (em todas foram colocadas lápides idênticas, como na da Cruz Quebrada por ex), seria necessário ou a comparação fotográfica, ou a existência  da sua proveniência nos registos das peças. As peças eram o item nº 1 e 2 da exposição, e na discrição apenas constava: "lápides com o brasão da cidade e data de construção 1608", nada que me indicasse de onde teriam sido retiradas, perguntei aos técnicos da CML no local, nada sabiam, consultou-se o arquivo on line a descrição era a mesma, no entretanto chama-se mais um técnico que prometeu ir investigar a questão e a coisa ficou por ali.




 Fotografei então as lápides mas desde logo, as fracturas no cimo, onde originalmente se encontravam duas cruzes, me pereceram familiares, e não me enganei, ao comparar as peças existentes na exposição com as fotografias que temos em arquivo, as semelhanças são evidentes e claras.
 Estava portanto, perante uma importante relíquia das memórias algesinas, felizmente estão bem conservadas, expostas ao público para que todos as possam apreciar, tinha-se era perdido o conhecimento da sua origem e o seu passado, mesmo assim foram consideradas de muito relevo pela CML, a ponto de serem apresentadas nesta importante exposição.
 Informei então a CML destes novos dados, de modo a que fossem atribuída a correcta classificação ás peças, conservando-se assim, para memória futura um pedaço de história de Algés que se julgava desaparecida, bendita a hora em que me lembrei de visitar o palácio Pimenta e o museu da cidade.




 Mas a história rocambolesca deste património não ficaria por aqui. Regressei uns meses depois ao Museu da Cidade no palácio Pimenta para rever as peças nº 1 e 2 da sua exposição, as lápides da ponte velha de Algés. Uma visita que juntou uma tarde de lazer com a família ao meu hobby pessoal (a história da cidade), não podia deixar de constar rever as lápides da "nossa" ponte para verificar a alteração solicitada por mim no arquivo e na legenda das duas peças. Tinha sido solicitada pela Gazeta a revisão do registo das duas peças e a sua classificação como provenientes da ponte velha de Algés com as devidas provas documentais e fotográficas. Ora foi com evidente alegria que constatei que o museu da cidade se dignou aceder ao meu pedido e deu seguimento à devida correcção. Podemos assim nos orgulhar de Algés ter agora duas peças de muito relevo na exposição, já que não se sabia a sua proveniência, seria pois como se de lá não viessem.
 Infelizmente como "não há bela sem senão" o Museu da Cidade corrigiu a legenda mas incompreensivelmente acrescentou na pequena nota explicativa o seguinte paragrafo:

" A ponte de Pedrouços permitia a circulação de muitos peregrinos que demandavam a igreja do convento de Nossa Senhora a Boa Viagem (Junto ao atual Estádio Nacional)."



 Esta nota explicativa não só demonstra desconhecimento da historia de Algés como também até da própria geografia da região de Lisboa, mais estranho ainda se tivermos em consideração que me prontifiquei a enviar um resumo da história daquelas pedras como suporte do meu pedido de revisão de registo. Ora nem a ponte de Algés tem nada a ver com a de Pedrouços, nem Algés nada tem especialmente a ver com o convento da Nossa Senhora da Boa Viagem, tem sim com o de São José de Ribamar, assim sendo lá voltei "à carga" e solicitei nova revisão da nota explicativa das peças. :-)
 Ainda não tive oportunidade de voltar ao Palácio Pimenta, mas de qualquer forma conseguiu-se esta pequena vitória de termos hoje o nome de Algés naquele registo e a alegria de a sua história não se ter perdido para sempre.



(*) Os referidos moinhos serão os de Outurela e não de Linda-a-Velha

terça-feira, 29 de maio de 2018

A cadeira Gonçalo, uma cadeira que nasceu em Algés e correu o mundo




 Uma cadeira de ferro composta por quatro peças fundamentais: dois tubos, um encosto e um assento. O primeiro tubo define as duas pernas traseiras, o apoio para os braços e o contorno superior do encosto, o outro compõe as duas pernas dianteiras e o contorno do assento. O encosto é curvo e ligeiramente inclinado, e o assento, também levemente inclinado, tem a frente curvada.



 A peça terá nascido entre os anos 30 e 40, no número 16 a 18 da Rua Alegre, em Algés, a primeira casa da Arcalo. Produzida pelas mãos do mestre serralheiro Gonçalo Rodrigues dos Santos, na década de 40, a cadeira já podia ser encontrada na esplanada do Café Lisboa, na Avenida da Liberdade ou nas esplanadas da alameda de Algés. Ainda assim, o modelo original apenas viria a ser registado nos anos 50, com o nome de cadeira modelo 7, pelo seu criador. Terá sido nos anos 30 que se viram os primeiros exemplares sobre a calçada lisboeta. Primeiro em espaços de tertúlias como o Café Nicola e A Brasileira, a cadeira acabou por ir de férias e começou a surgir também em locais de veraneio.

A antiga fábrica na Rua Alegre em Algés





 Manuel Caldas, de 67 anos, é o actual dono da fábrica que se encontra hoje em dia no Cartaxo, local onde a Arcalo dá, diariamente, continuidade a este ícone do design português.Nasceu na mesma rua da cadeira. “Todos os dias passava à porta da Arcalo”, relembra. O encarregado, Serafim, e outros trabalhadores eram seus conhecidos desde miúdos e com 17 anos começou a trabalhar na empresa. “Eu trabalhava no comércio, mas de vez em quando gostava de trocar e lá saltava para o ferro”, conta.

Depois de um período emigrado na Alemanha, regressou a Portugal e apercebeu-se que a Arcalo estava para fechar. O tempo fez com que o negócio esmorecesse mas o antigo empregado da fábrica quis recuperá-lo. “Achei que a fábrica merecia mais respeito e continuidade”, explica. Na altura, Gonçalo Rodrigues dos Santos já tinha falecido e nem os filhos nem o encarregado estavam nessa disposição. “Eu arrisquei”, lembra Manuel Caldas. O filho do mestre Gonçalo aceitou a proposta, corria o ano de 1994. “Achei que era uma parvoíce acabar com a empresa e apostei na cadeira.”

Manuel Caldas, dono da fábrica, nasceu na mesma rua da cadeira. Foto Cristiana Borges


Em 1995, Manuel Caldas apresentou ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), um pedido de registo da Arcalo como marca, mas só em 1997 ele foi concedido. Desde aí, a fábrica é reconhecida como marca nacional de móveis metálicos. Ainda em 1995, o proprietário viu o design da sua cadeira ser também registado como modelo industrial nacional. “Cadeira destinada a esplanadas e outros recintos abertos ou fechados”, lê-se na epígrafe do processo disponível na base de dados do INPI. O resumo é simples: “cadeira conjunto de linhas geométricas, ângulos no encosto, pernas e assento”.




Em homenagem ao homem que lhe deu vida, Caldas batizou-a Gonçalo. “Entendi que esta tinha de ter um nome para ser uma senhora cadeira, senão seria só mais uma”, diz. Em 1995, o industrial fez um último pedido que consistia em registar a Gonçalo enquanto marca nacional. Dois anos mais tarde, o requerido viria a ser aprovado pelo INPI e, por isso, Manuel Caldas afirma: “A cadeira Gonçalo é só nossa, embora toda a gente chame Gonçalo a todas as outras e elas não o sejam.”



Com quatro anos a comandar os destinos da marca, surgiu o maior desafio da história da Arcalo: equipar todo o recinto da EXPO 98. “Em Algés não havia capacidade”, recorda Manuel Caldas. Para fazer as 9.000 cadeiras que tinham sido encomendadas, a fábrica foi obrigada a mudar-se para Torres Vedras. “Demorou três meses a fazer”, conta o industrial. A visibilidade da EXPO trouxe mais procura pelo artigo. “Na altura todos beneficiaram, até a concorrência.”


A História De Um Mestre





A história da cadeira Gonçalo remonta ao início do século 20. Em apenas 22 anos, Gonçalo Rodrigues dos Santos era um orgulhoso Mestre Artesão. Muito jovem, ele decidiu estabelecer-se em Lisboa, Portugal, e abrir sua própria oficina. Naqueles primeiros dias, Mestre Gonçalo e as suas dezenas de trabalhadores trabalhavam e faziam à mão um pouco de tudo, de acordo com as ordens do cliente. Estes incluíram grampos para correias de máquinas, saltos para calçados femininos ou mesmo juicers frutas.

A cadeira de metal famosa veio depois. Por causa de seu irmão, Mestre Gonçalo visitou a França várias vezes e foi lá onde se inspirou.

Após os primeiros desenhos da cadeira, o Mestre encontrou seu primeiro problema artesanato: A Dobra de um tubo de ferro. Estudar, veio em seguida, mais desenhos, experiências. Dias, fins de semana, semana após semana, até que finalmente conseguiu: o seu próprio design e invenção – o seu próprio ferro máquina de dobra.
 O Café ‘Chave de Ouro’, fundada em 1916, foi a primeira a encomendar as novas cadeiras concebidas e criadas por Mestre Gonçalo. O projecto foi mais tarde aperfeiçoado para equilibrar o conforto e a estética até a década de 50, onde ela tem a sua forma final.
Por esse tempo, a sua prova de ferrugem, características robustas e empilháveis concebidas pelo mestre Gonçalo encontrado o seu lugar diretamente sobre esplanadas e em parques públicos em todo o país.



Seu design foi puramente resultado da análise empírica. Naquela época, uma das inovações surpreendentes foi a invenção da máquina de dobrar tubo, que Mestre Gonçalo foi aperfeiçoando para moldar as curvas elegantes necessáriasminimizando o número de pontos de soldadura.
Naqueles dias, a ergonomia era eram os trabalhadores que analisavam nos protótipos e, em seguida, avaliava características básicas, como o conforto e a capacidade de empilhar várias cadeiras. Dentro de décadas de tentativa e erro, o resultado é uma das cadeiras mais confiáveis já feitas.
Hoje, este processo ainda é feito à mão por artesãos especializados.

A cadeira Gonçalo tornou-se um ícone da estética industrial portuguesa. A sua popularidade dentro de terraços em Lisboa concedeu-lhe um lugar na Colecção do Museu de Lisboa de Design e da Moda (MUDE) como um símbolo da cultura Portuguesa.



1961 Esplanada da avenida da Liberdade, fotografia de Artur João Goulart

1961 Esplanada da avenida da Liberdade, fotografia de Artur João Goulart

1956 Parque Eduardo VII, esplanada, fotografia de Armando Maia Serôdio 
1956 Esplanada da Cruz das Oliveiras, fotografia de Armando Maia Serôdio

1961 Esplanada do café Caravela d'Ouro, fotografia de Arnaldo Madureira

1956 Parque Eduardo VII, esplanada, fotografia de Armando Maia Serôdio






terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

A Água de São Marçal




 Na primeira metade do séc. XX instalou-se na Quinta do Salles ou dos Cónegos em Outurela uma pequena indústria de engarrafamento de águas, que se tornou famosa na região de Lisboa pelas suas qualidades medicinais, a Empresa das Águas de São Marçal, cuja concessão lhe foi atribuída a 28 e Agosto de 1926. A empresa aproveitava a nascente que ainda existe no local para captar a água que, posteriormente, era engarrafada em diversas embalagens de ¼ de litro, cinco litros e dez litros. Em 1940, a exploração chegou a atingir os 193.000 litros engarrafados e comercializados.





Identificação da nascente - São Marçal

Outurela, Estrada de S.Marçal, na zona Oeste dos grandes armazéns de Alfragide, mas já no concelho de Oeiras.
Oeiras União das Freguesias de Carnaxide e Queijas

Bicarbonatada Cálcica e Magnesiana (Contreiras, 1951)

Indicações - Dispepsias, gastro-enterites, fígado e rins (Contreiras, 1951). Usada como água de mesa.

1926 – Alvará de Concessão, publicado DG, nº220, 2ª série, de 18/9/1926

1923 anuncio Agua de São Marçal


Historial

No relatório de reconhecimento de Segurado (1926) é feita a seguinte descrição: “a água brota das paredes, ao fundo de uma galeria de 94m, aberta no basalto, donde segue para um tanque de alvenaria hidráulica e daí, em tubo de grés, para um reservatório junto às instalações de engarrafamento." (cit. Acciaiuoli, 1944,IV-252) 
No Anuário (1963) informa que esta água era vendida em garrafas e garrafões natural ou gaseificada e servia ainda na preparação de refrigerantes.

Bicarbonatada Cálcica e Magnesiana (Contreiras, 1951)

Garrafa de 1/4 Lt de Água de São Marçal


Bibliografia
Acciaiuoli: 1936; 1937; 1940; 1941; 1942; 1944; 1947;1948a;  1948b; 1949-50; 1953.Calado 1995, Contreiras 1937, Contreiras 1951, Lepierre 1919, Lepierre 1924, Segurado 1926, Águas minerais do continente e Ilha de S.Miguel. 1940, Anuário Médico-hidrológico de Portugal 1963, Le Portugal hidrologique e Climatique 1930-42.




A Quinta do Salles ou dos Cónegos



«Outorella - Logar ao nascente de Carnaxide 1,5 kilometres. Perto é a quinta antigamente dos Conegos e depois do Salles e que tendo pertencido ao valente brigadeiro Lobo antes coronel do segundo de caçadores pertence hoje ao sr João Baptista Monteiro ao qual pertence tambem a quinta da Fabrica.»

In "Os primeiros trabalhos litterarios", Padre Francisco da Silva Figueira 1865


 O conjunto de imóveis contem pormenores arquitectónicos muito antigos, que remontam pelo menos ao séc. XVIII, quando se instalou ali um pequeno convento, era conhecida pela quinta dos Cónegos por ser habitada por frades daquela ordem (1), embora a quinta já existisse anteriormente.
 Com a extinção das ordens religiosas em 1834, a quinta foi vendida e transformada em exploração agrícola particular e residência da família Salles. No início do séc. XX, instalou-se no local a pequena indústria de engarrafamento de águas mas também uns anos depois uma fábrica de pirolitos (2), passando nessa altura a ser conhecida pela quinta de São Marçal.
 A quinta pertenceu depois ao brigadeiro Lopo e ao sr. João Baptista Monteiro. Actualmente, da antiga propriedade subsistem alguns edifícios, poços e o curioso sistema de rega. Adquirida pela Câmara Municipal de Oeiras, é hoje um centro de empresas gerido pela Fundação Marquês de Pombal e um parque público


(1) Ordem dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho
(2) Bebida açucarada e gaseificada, que continha um berlinde junto ao gargalo











segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

1964-01-29 A «Habitat» começará muito brevemente a urbanização do Vale de Algés



1964-01-29 Diário de Lisboa




 Por várias vias obtivemos informações seguras de que, em breve, terminará a realização de uma ideia grandiosa pelo seu alcance social, que transformará os amplos terrenos do Vale de Algés numa cidade-Parque maravilhosa, a escassos minutos do centro da capital, A fim de satisfazer a curiosidade publica, intencionalmente mal informada a respeito deste magno plano de urbanização, procurámos documentar-nos junto da Sociedade Anónima Habitat com, escritório em Lisboa na Av. da Republica, 42-AC, proprietária da quase totalidade dos terrenos, tendo ficado autorizados a esclarecer que o empreendimento será em breve iniciado de acordo com as directrizes e orientações oficiais, que asseguram a transformação do Vale de Algés numa aprazível zona residencial de características talvez únicas no nosso País, mercê de uma iniciativa generosa associada a uma visão perfeita do problema. Apesar de jogo de Interesses, a obra que vai iniciar-se consolidou-se e tomará forma real; outorgando merecido e justificado orgulho aos realizadores desse magnífico empreendimento, demonstrando o que pode alcançar a vontade no exercício da sua função, através de uma acção valiosa. exercida pela importante Sociedade Habitat» que bem merece confiança, crédito e prestigio.


No campo da acção 

 Orientámos-nos, desde a Praça de Touros de Algés, para localizar os terrenos onde a «Habitat», por iniciativa própria, vai começar a exercer a sua actividade construtiva e materializar a ideia com que nasceu. Estão situados entre a Marginai e a Auto-Estrada, limítrofes com o Parque Florestal de Monsanto. no triângulo turístico mais evoluído do País. A comunicação com o centro da capital é rápida e cómoda, pois, utilizando a Auto-Estrada, a Praça Marquês de Pombal fica a 4 minutos e, a do Comércio, a 6 minutos de trajecto.
 De Norte a Sul, a zona residencial é atravessada por uma ribeira que nos consta será canalizada, ficando a descoberto nalguns sítios para embelezamento do conjunto e prática de desporto náutico. Desde a parte Norte dos referidos terrenos avistam-se uns viveiros com dezenas de militares de árvores de diversos plantios, que se destinam para os Jardins da grandiosa urbanização.
 A vista recreia-se numa paisagem repousante e a percepção do futuro entra pelos olhos e excita a fantasia. É um sítio adequado para estabelecer uma selecta e grande zona residencial, tendo como vizinhos naturais, o mar e o Parque, que em dialogo festivo dão vida e cor á paisagem natural.
 É forçoso avaliar os diversos e contínuos transportes que se podem utilizar, Seis em direcção ás povoações de beira-mar e Costa do Sol ou Lisboa-Centro. mediante a utilização dos serviços ferroviários da linha Estoril, dos eléctricos, autocarros e, a seu devido tempo, do metropolitano. Pensando, com lógica, este empreendimento imprimirá ao Concelho de Oeiras uma muito mais categorizada prestancia, e, a Algés um aumento de prestígio e vida, que se reflectirá em muitas aspectos, com as características de uma cidade nova e moderna, dando a mão a Lisboa.




Em contacto directo

Decididos a completar com garantias a informação, fomos á sede da Sociedade «Habitat», onde gentil e deferentemente fomos atendidos pelo digno Presidente do Conselho de Administração, Sr. Joaquim Peña. Este Senhor, obsequioso cavalheiro da irmã Espanha. de espírito franco, ideias precisas e sinceridade natural, acolhe as nossas perguntas - benévolamente e presta-se a elucidar-nos em tudo, satisfazendo em absoluto a finalidade da nossa visita. As perguntas foram iniciadas num ambiente cordial:

 —Como formou a Ideia do seu grande empreendimento?
— Tive coma base o grave  problema habitacional da Capital, o nível de vida geralmente insuficiente e as rendas excessivamente elevadas para as possibilidades económicas da maioria. Pensei, que dispondo de terrenos com situação priveligiada e que toda a pessoa humana aspira a adquirir casa própria, poderia orientar-me a satisfazer tão natural aspiração da classe média. em condições favoráveis e especialíssimas. Pondo uma conduta social ao serviço das esperanças de milhares de famílias, constituídas principalmente por profissões liberais, como a elite da inteligência, do comércio e do trabalho mental. Partindo do princípio de que as suas possibilidades não lhe permitem realizar o sonho de sempre e que as aparências sociais exigem muito, até forcar-lhes a satisfazer as rendas excessivas da construção bem situada e acondicionada, cheguei á conclusão que o seu sonho era difícil de converter-se em realidade. A minha intenção era e é poder favorecer e animar essas aspirações.

-E supunha ser realização fácil?
-Ao contrário, difícil. Muito difícil para uma empresa particular, desejosa de poder contribuir para a solução de um problema existente. e intenso, prescindindo do concurso de grandes capitais, e dos juros comportáveis e a longo prazo.

-Por si só, seria possível realizar totalmente o projecto?
- O aspecto financeiro então não me preocupava, devido a possuir somas disponíveis no País e estrangeiro, sobradamente suficientes, sem necessidade de recorrer aos créditos. Circunstancias posteriores e imprevistas, forçaram-me a destinar as somas em disponibilidade, a outros objectivos.

- Como é lógico, pretendia o Sr. Peña recorrer ao financiamento com capital nacional. Não é assim?
-Assim fiz, Porém, tive que desistir, em fase das condições inadmissíveis que fariam perigar o controle da minha própria iniciativa estando neste momento assegurados os resultados financeiros necessários.




— Qual é o desenvolvimento e actividades da Sociedade que administra?
—Para dar resposta a essa pergunta, tenho que me referir á Fundação Santa Isabel, que fundei no ano de 1960 e que tem por objectivo principal á eliminação dos bairros de barracas existentes chamadas de Santas Martas e Pereiros, em Algés, devendo construir 550 alojamentos para gente humilde e pobre, sem condições de vida digna nas barracas, onde fazem por viver. A sua construção está orçamentada em 32 500 Contos, não incluindo o valor dos terrenos. Para esse fim, altamente social, fiz entrega de 10 000 contos á Fundação e o que resta por entregar, efectuar-se-á, de acordo com as condições firmadas com a Municipalidade de Oeiras. É um compromisso adquirido. As obras começarão em breve' e 550 famílias ficarão vivendo sem a tristeza da miséria do seu alojamento e livres de um ambiente de asfixia. Não creio necessário ter que ponderar o seu alcance social, ainda que convenha afirmar que a fundação em referência á orientação social de Habitat.

-Pode, o Sr. Peña, antecipar-me os objectivos do empreendimento da sociedade propriamente dita?
-Com muito gosto. O seu empreendimento é de muito maior transcendência. Habitat, na sua grande realização no Vale de Algés, construirá uma cidade atractiva, dotada do máximo conforto e equipamento, dispondo de 22 parques infantis, de escolas para ambos os sexos, pré-primárias. primárias, particulares e de ensino religioso e, até, de internatos, que a juventude abandonará para frequentar as universidades. Esta magnificente e nova cidade, será das mais completas nos aspectos cívico, desportivo e comercial.

—Como o desporto «é o pão nosso de cada dia», agradeceríamos que detalhasse esse aspecto. Pode ser?
—Com multo prazer. Além de um grande centro desportivo publico, terá um campo de futebol, Ringue de Patinagem, Basquetebol, Voleibol, Balneários, Vestiários, Esplanada-Bar e Sala de festas para os associados, assim como um moderníssimo Country-Club destinado aos futuros proprietários que por este facto terão direito de sócios e no qual quase todos os desportos estarão ali representados. Constará de piscinas de Verão e de Inverno. Court de Ténis, Picadeiro, Frontão Basco, golfito, Salas de Esgrima, de Bouling e Salas Recreativas de jogos de Salão e, ainda, um grandioso restaurante club-dancing, para exibição das melhores shows internacionais. Neste esplêndido conjunto desportivo e recreativo, construiremos um grande e digno hotel, acondicionado ao ambiente. Que associado dos grandes clubes internacionais, possibilitará a passagem e estadia em Lisboa, dos magnates das finanças, das industrias e das figuras relevantes da literatura e da política.

- Essa grandiosa urbanização que características ideais tem?
-Do privilégio da sua situação e conjunto, resultará uma das mais belas cidades residenciais do mundo, com a enorme vantagem de ficar quase ligada ao centro da Capital, ás zonas comerciais importantes e secções «administrativas. Dizem os nacionais e os estrangeirou que visitaram a exposição e contemplaram os Projectos e a maqueta «que Portugal pode sentir-se orgulhoso de obra tão gigantesca».

— Quantos edifícios serão construídos para as classes sociais. que antes fez referência?
—A Habitat construirá cerca de 4000 andares, que serão vendidos em propriedade horizontal, de maneira especialíssima e não utilizada ainda.

—pode concretizar-nos essa modalidade?
—Está concretizada na respostas anterior e quanto a, detalhes oportunamente serão do domínio Publico. Toda essa grandiosidade para facilitar uma vida socialmente amena, não seria completa se não fosse assistida pela parte religiosa, a satisfazer as necessidades do espírito; a Habitat, destinou uma grande soma para construir unta sumptuosa igreja e centro paroquial, condignos do empreendimento, que foi oferecido a Sua Eminência, o Cardeal-Patriarca.

-Uma ultima pergunta, Como foi recebida a ideia geral pelos Organismos Oficiais?
— Devo vénia de agradecimento ao Senhor Ministro das Obras Publicas, Exº Senhor Eng. Arantes e Oliveira, ao Exº Sr. Eng. Sá e Melo, então Director dos Serviços de Urbanização e Plano Regional e á Exª Câmara de Oeiras e seu Digno Presidente, Sr. Arquitecto Costa Macedo, pelo encorajamento, compreensão e assistência moral concedidos. Totalizando: «a minha ideia deixou já de ser Propósito, para converter-se, muito em breve, numa grandiosa realização,

Felicitando efusivamente o Sr. Joaquim Peña pela sua valia moral, desejamos à Habitat, como empresa mentora e realizadora, o maior dos êxitos nessa obra construtiva, económica e social, que a responsabiliza e engrandece.


Noticia do arquivo da CMOeiras

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

A Capela do Convento de São José de Ribamar




 O convento de S. José de Ribamar foi fundado em 1559 por Dom Francisco de Gusmão, fidalgo cavaleiro da Casa da infanta D. Maria, e sua mulher Dona Joana de Blasbelt. A igreja foi dedicada a S. José. O convento inicial, de construção precária, ruiu em 1595, sendo posteriormente reconstruido. No início do século XVII, Dom Pedro Castilho (bispo inquisidor-geral) mandou fazer a sacristia e reedificar a casas do cardeal. Mais tarde, em 1617, foi construída a casa do capítulo, a abobada da igreja e aumentado o número de celas, tendo agora o convento a capacidade para 30 frades. Nos finais do século XVII, era venerada por muita gente uma imagem do Menino Jesus que havia na sacristia do convento. Com a extinção das ordens religiosas em 1834, o convento e as suas terras foram vendidas a José Marques da Costa soares. Em 1872, o conde de Cabral comprou a propriedade e o velho convento foi transformado em palacete para habitação. São do século XIX as muralhas que suportam as terras de Ribamar, o torreão e as duas guaritas. Actualmente, o antigo convento e posteriormente palacete conserva ainda elementos arquitectónicos e paisagísticos de grande interesse histórico e artístico. A igreja, a sacristia e o claustro, os painéis de azulejo e o palacete de arcarias estão enquadrados pelos belos jardins com vegetação exótica e rara (dragoeiros, palmeiras e outras espécies). 

CLASSIFICAÇÃO: Imóvel de valor concelhio, de acordo com o Edital nº 184/2004 (2ª série), publicado no Diário da Republica Nº 67, II Série, 19 de Março de 2004.



1961 Capela do Palácio do Conde da Foz (Convento São José de Ribamar), 
fotografia de Eduardo Portugal


O estatuto dos frades arrábidos (que dos franciscanos eram os de regras mais apertadas) — dispunha que as igrejas de seus conventos não podiam ter de comprimento mais que oitenta palmos, medidos da porta de ingresso até a parede de fundo do altar-mór. Pois a de São José de Ribamar em Algés era mais pequena. Tinha, porém, três altares, — o principal e dois colaterais. No altar-mór estavam duas imagens muito veneradas, uma de cada lado do sacrário — a de Nossa Senhora da Conceição, cuja festa era custeada pelo conde de Aveiras, D. João da Silva Telo (o que vendeu o palácio de Belém ao Senhor D. João V) e a de S. José — padroeiro da casa — que todos os anos, a 19 de Março, era objecto de devota festividade promovida pelos condes de Santa Cruz, depois marqueses de Gouveia e mais tarde duques de Aveiro, família que veio a ter um dos fins mais trágicos que a nossa História regista. No retábulo, de boa obra de talha, que ainda existe embora deslocado de seu primitivo lugar, veneravam-se, cada qual em seu nicho, mais quatro imagens — a de S. Francisco das Chagas, que era festejado pelo proprietário do cargo de provedor da Alfândega; a do portuguesíssimo Santo António, cuja festa corria por conta da casa dos condes de Castelmelhor; a de S. Luiz, bispo de Tolosa, de quem se não esqueciam os marqueses de Nisa; e, finalmente, a do grande reformador e instituidor dos arrábidos, S. Pedro de Alcântara, o qual, no curioso dizer do cronista, «se contentava com a solenidade da Província».
 Nos outros altares viam-se: no do lado da Epístola, S. João Baptista e no da banda do Evangelho, a milagrosa imagem do Menino Jesus, que fôra dádiva do sexto conde de Portalegre, D. Diogo da Silva, que aí estava sepultado. - A imagem do santo padroeiro da casa era famosa para, por sua intercessão, se alcançar sucessão nos matrimónios. Dera-a Dona Filipa de Sousa, mulher de Diogo das Póvoas, que foi provedor da Alfândega de Lisboa. Este casal aspirava a ter um herdeiro, mas as suas pretensões sempre se haviam malogrado e, por isso, já desesperavam de o alcançar. Logo que a bem-dita imagem de S. José foi colocada no altar, Dona Filipa implorou seu valioso patrocínio para o deferimento, pelo Altíssimo, de seu maior desejo e, diz a história, obteve o almejado despacho tendo, meses depois, a Luiz das Póvoas, que lhe sucedeu no morgadio. Este facto tornou-se conhecido e levou muita gente a apegar-se com o Santo Patriarca para conseguir a fructificação de seu leito.

1961 Entrada para a capela do Palácio do Conde da Foz (Convento São José de Ribamar), fotografia de Arnaldo Madureira


 Não resisto à tentação de contar-lhes uma história curiosíssima, embora me arrisque a não ser novidade.
 Dona Maria Francisca Isabel de Sabóia, que foi Rainha de Portugal e (por via de seu matrimónio com o Senhor D. Afonso VI ter sido anulado) depois Princesa Regente, porque a razão de Estado a obrigou a desposar seu cunhado, D. Pedro — Dona Maria Francisca, ia dizendo, para assegurar-se da ventura de dar sucessão ao Reino, prometeu uma novena de sábados a S. José de Ribamar, quer dizer: prometeu vir nove sábados consecutivos a fazer suas orações perante a milagrosa imagem do Santo patrono do convento. E deu começo à devota promessa ao mesmo tempo que uma outra senhora, fidalga e titular que, andava cumprindo idêntico fadário. No segundo sábado, porém, sucedeu coisa estranha e que deu muito que falar. A fidalga chegou mais cêdo e, como encontrou a porta da igreja fechada, foi em busca do irmão porteiro para que lha abrisse. Ele não se fez rogado e acudiu prestes, mas... por mais voltas que desse à chave não conseguia que ela pegasse nas guardas da fechadura. Teimou, empenhou-se na tarefa, porfiou, suou, empregou todos os esforços, chegou mesmo a pecar e a transgredir os preceitos da Ordem (perdendo a paciência e irando-se contra a engrenagem), mas a fechadura a nada se moveu e a senhora teve de contentar-se em fazer as suas orações desde o alpendre e regressar casa, com negros pressentimentos sobre o futuro da sua aspiração. O frade, porém, ficou-se mortificado até a medula...  porque o bergantim em que viajava a esposa do Príncipe Regente, D. Pedro, já se avizinhava na praia. A excelsa visitante desembarcaria brevemente e a maldita da fechadura seguia apostada em desfeitear as visitas, por mais alta que fosse sua hierarquia. E o bom do arrábido, cada vez mais perturbado, não atinava com uma saída airosa para tão grave embaraço. Até que tomou a resolução heróica de ir falar ao padre guardião a pedir-lhe licença para arrancar a engrenagem. No entretanto chegava Sua Alteza... e o frade, atrapalhado, inconscientemente, pela força do hábito, fez, mais uma vez, menção de abrir a porta dando a volta à chave... Mas... ¡oh prodígio! ... ¡oh maravilha! ... A fechadura obedecera suavemente, funcionara como se estivesse untada de fresco e a porta, girando nos fortes gonzos, ¡patenteou a entrada franca a Dona Maria Francisca Isabel de Sabóia! O caso foi faladíssimo e não faltou quem o interpretasse no sentido da Princesa encontrar aviamento a sua pretensão e da concorrente vê-la malograda. Os factos vieram, na devida altura, demonstrar o acerto dos vaticínios. No dia de Reis do ano seguinte (1669), as náus de guerra e todas as fortalezas salvavam. Todos os sinos de Lisboa repicavam festivos e, em acção de graças, o verbo assombroso de António Vieira reboava sob as abóbadas da Capela Real de Santo Tomé, nos Paços da Ribeira. é que a novena de sábados, que a Sereníssima Princesa levara a cabo ante a prodigiosa imagem de S. José de Ribamar, sempre alcançara bom despacho. Acabara de nascer uma menina que, a 2 de março seguinte, conduzida nos braços do chique de Cadaval, D. Nuno Álvares Pereira de Melo, iria a baptizar pelo bispo de Targa, D. Francisco Sôtomaior, sendo padrinho Luiz XIV — o Rei Sol — representado por seu embaixador na Côrte, o padre Saint-Romain. Essa menina era a Princesa Dona Isabel Luiza Josefa que chegou a ser jurada herdeira da coroa portuguesa, antes que seu Pai tivesse de seu segundo matrimónio (e sem a mediação de S. José...) o futuro D. João V.


Princesa Dona Isabel Luiza Josefa

domingo, 12 de novembro de 2017

Os «Chalets«» da Cruz Quebrada



 Os chalés da Cruz Quebrada e os do Dafundo, como os de toda a parte, constituem assunto da crónica de hoje. Merecerá. a pena falar de tal coisa? Os chalés marcam uma época na vida social aqui do sítio, como em toda a Europa - Chalé constitui o aportuguesamento da palavra francesa ‹chalet», que significa a modesta habitação dos montanheses da Suíça, feita em madeira muito rústica e inteligente para resistir ao tempo violento dos invernos alpestres. Depois o vocábulo generalizou-se a habitação elegante destinada a estágios de Verão em praias ou campos sem. atender a razões geográficas, artísticas ou higiénicas. Com o «progresso» a vivenda de prazer passou a ser o que se chama hoje uma habitação residencial. Quando ainda era novidade, o chalé constituia a ambição de todo o chefe de família que vivia com abastança, como actualmente é o automóvel. O ricaço africanista ou o brasileiro volvido à terra, o negociante de secos e molhados, como o industrial ex-operário, resistentes a toda a cultura de que ao precisaram para enriquecer, maculavam as lindas paisagens dos vales dos rios do Minho e do Douro, as arribas das nossas praias ou os plainos do Ribatejo, com os despropósitos da sua vaidade de pedra, cal e tijolo.  Assim também aconteceu no Dafundo e na Cruz Quebrada, à beirinha. do Tejo. Imaginemos o pai de família, feliz, compensado o seu esforço após uma longa vida de trabalho, proprietário dum chalezinho, ao cruzar um amigo, mal podendo esconder a sua pampórria a armar em generoso hospitaleiro:
— Olá, amigo, você se passar pela Cruz Quebrada bata ao ferrolho, tem lá uma pobre choupana onde há sempre lugar para os amigos. Os chalés que nós vemos de norte a sul do nosso País, construídos no fim do século XIX e nos primeiros anos de novecentos, são a projecção incolor e insípida da arte de construir, onde a incompreensão e o mau gosto se deram as mãos na desarmonia das linhas arquitectónicas com as da paisagem e nas da comodidade com a higiene. E hoje?
 A gracilidade da habitação do camponês suíço, a razão de ser de cada uma das suas peças arquitectónicas, defendendo dos frios e das neves, da luminosidade destas e das humidades, tudo equilibrado com a Natureza nas cores, nas condições higiénicas e na arte, tudo isto foi letra morta, para os mestres de obras de entâo que, como os de hoje, mancomunados com os homens de dinheiro, negam o Mestre.



 A comemorar essa época. lá estão esses edifícios onde não falta um torreão com o seu catavento servindo de pára-raios a ofender o Céu que tudo perdoa; lá estão as janelas redondas, as geminadas, as sacadas, os terraços e os mirantes e todas as fantasias que o construtor acéfalo pode produzir para satisfação do seu freguês endinheirado. As considerações produzidas atingem todo o prédio-moradia, com pretensão artística. Na nossa conversa de hoje a ordem do dia é citar as que, construídas na Cruz Quebrada, ainda subsistem. Alguns já desapareceram na voragem da renovação sob a égide do bota-abaixo e arriba «buildings». Quando ainda neste nosso sitio a Estrada Nacional nº 67, de Lisboa a Cascais, era ladeada por muros ou pelos sapais da praia, casa aqui, casa ali, restos de quintas nas encostas de Santa Catarina e no esteiro do Jamor, propriedades relativamente recentes de neo-fidalgotes da constitucionalismo em cruzamento mais ou menos perfeito com os «vieille roche», as terras começaram a sofrer a evolução mercantil a que nós assistimos actualmente por toda a parte. Nos costumes entrou a nova lei, vender a leira para construir, realizar dinheiro trabalhando o menos possível e passar ainda por generoso cidadão para quem a utilidade pública é miragem sagrada e a quem o Estado agradece prèviamante o serviço através da mais valia.
  Assim apareceram o Parque de Mira Torres, as casas da estrada com frente para o Parque, entre as quais a do Clube, as Colmeias, a «avenida.» que arrependida tomou o nome de Rua de Policarpo Anjos, e todos os arruamentos mais ou menos estrangulados que nós ainda podemos adivinhar entre a praia e as barrocas de Santa Catarina de Ribamar. Sobrou a melhor talhada, a tira que viria a ser a Avenida Ivens e é ai que ulteriormente se fará, o "achalesamento, o monumento imorredoiro das almas criadoras da urbanização da Cruz Quebrada. Do que está à vista não vale a pena falar; as canalizações de esgoto das habitações das Colmeias bastam para atestar o espirito do comerciante a impender sobre a generosidade do sociólogo, a usura de braço dado com a hipocrisia na eterna comédia da caridade.



 Destas linhas de arquitectura do primitivo aglomerado populacional cruz-quebradense, acanhadas e deselegantes, que poderia esperar-se da avenida que ia surgir como fecho frontal da faixa ribeirinha do Jamor até... talvez Algés? As asneiras continuaram, o jogo de interesses, a ganância e a licença de parceria com os abusos e os compadrios, tornaram impossível qualquer plano de interesse público e a avenida terminou onde foi construído o Aquário Vasco da Gama. Para culminar a obra faltava a heresia histórica de apor à estrada marginal, árida, poeirenta e engasgada por um talude e pelo caminho de ferro, o nome respeitável de Roberto Ivens.
 Evidentemente que não vamos falar aqui de todos os chalés que ainda hoje recordam e documentam a vida local desde há meio século. Citaremos apenas os que ainda hoje recordam e documentam a vida local desde há meio século. Citaremos e porventura faremos algumas referências aos desaparecidos. Começaremos na Travessa dos Bombeiros Voluntários e de lá até ao Jamor, são cerca de 300 metros com catorze edifícios.


 Para oriente já é Dafundo e nós não queremos sujeitar os vizinhos ao soalheiro da nossa curiosidade histórica. São catorze as vivendas que ocupam todo este último quarteirao da Avenida Ivens, a começar na Travessa doa Bombeiros Voluntários da Cruz Quebrada e a acabar na curva. Os números de polícia das respectivas portas crescem de oriente para ocidente, sendo o da casa da esquina, a primeira, o nº 67 e o último o nº 84.
 As quatro primeiras residências, talvez as mais modernas, têm a história mais confusa, mercê das variedades de donos que lhes não deixaram criar tradições. Auxilia-nos nas investigações o nosso amigo, o sr. José Cruz, velho, perdão, antigo residente do nosso sítio. A da esquerda, deve ter sido censtruida por um tal sr. Dias, ha muito desaparecido; sofreu várias modificações e foi de vários donos e da várias nacionalidades. Nunca, foi chalet!
 A seguir vemos ainda duas habitações, muito semelhantes e agradáveis de aspecto. Uma teve o nome de «Carracedo». Foram construídas e habitadas por dois merceeiros da Rua da Prata, galegos, amigos e sócios. Uma delas foi mais tarde propriedade do «yachtman» Seixas, que a habitou. A seu filho Dick deixou recordação de bom camarada e divertido desportista na «jeuneese doré» da época. Em uma delas houve um restaurante com bilhares, pertencente a Jaime de Sousa Sabrosa, que teve vida efémera. Estas duas construções não têm características de chalés. Segue-se-lhe nm modesto prédio de casas de três andares, sem pretensões genealógicas, nem arquitecturais. Lá. vive há. muitos anos o nosso amigo, o sr. Vieira, com a sua célebre colecção de bichos domesticados de que eu recordo os lindos falcões e a sua evangélica paciência para os criar. Nos andares superiores habita o também nosso amigo, o sr. Domingues, sua familia, os seus livros de heráldica e de numismática e os seus sonhos. Entramos agora na série dos verdadeiros «chalets», todos pimpões, com colunas, varandíns, balcões e arrebiques da barafunda arquitectónica colhida entre o serrano suíço e o «chateau» francês em miniatura.



 Eis o primeiro, o «Dinorah». Foi de Joaquim Pessoa, comerciante a político de ontem. Pertence à sua filha e herdeira, srª D. Dinorah Lobo, esposa do nosso velho amigo, o sr. engenheiro Aulanio Lobo. O vizinho imediato é o «Gabriela», que foi primiti-vamente de António Alves de Matos e depois do advogado dr. Jaime Gouveia. De habitação passou ultimamente a instalação industrial. Está com escritos para alugar há muito tempo. É um exemplo das grandezas passageira.
 Como é óbvio a fieira dos «chalets» não foi de construção simultânea. Houve talhões de terreno difíceis de impingir e, assim, há construções recentes como acontece com a que serve de residência ao sr. Gregório Fernandes. Não é «chalet». Tem linhas utilitarias simples e incaracterísticas e um... painel de azulejos bonito e oportuno que representa Camões a falar às ninfas do Tejo, as suas musas:

"E vós Tagides minhas, pois criado
Tendes em mim um novo engenho ardente."

 Esta vivenda Fernandes fez uma solução de continuidade na série de chalés que anunciámos e que vai recomeçar. Com o nº 78 na porta, eis o «Alice», sem protohistória. Depois o «Ana», cujo primeiro dono, um senhor Ferraz, o vendeu ao médico de boa-memória, o dr. Júlio Eugénio Roseira, cuja familia depois do seu desaparecimento se desfez dele para outro dono, o actual, que não sei quem é. Ao lado, imediatamente, está o «Laura», mandado construir pelo solicitador encartado Alfredo Aníbal de Mendonça Heitor, que o transmitiu por herança a sua filha, a srª D. Laura Heitor Bustorff. O vizinho contíguo é o «Óscar», realização do funcionário superior da CP Fernando Eugénio da Silva Lopes, cujo filho de nome Oscar justifica o nome do chalé, que ele herdou de seu pai e depois por seu falecimento transmitiu à senhora sua viúva. É hoje um sagrado vínculo de familia. Segue-se a «Vila Hortense», uma vivenda engraçadinha, talvez por não ter pretensões a chalé. Lá residiu um médico da marinha, o sr. dr. Salgueiro, que exerceu a sua profissão muito tempo em Macau, pelo que tinha na sua casa um rico e belo museu de loiças, móveis, charões, metais, etc, chineses. Confessamo-nos aqui grandes bisbilhoteiros, mas com a justificação que provém de admirarmos o seu bom gosto de coleccionador-artista. Perdoe-nos colega. Esta moradia foi vendida ao sr, Eduardo Dias Ferreira, que a transmitiu a outro médico que lá mora actualmente, o senhor dr. Ramos Faria.
 Restam da série as dois últimos, o «Matilde» e o «Leonor». São talvez os mais antigos, contemporâneos de um outro que foi demolido para corrigir o traçado da estrada marginal e se chamava Vila Fernanda. Estão muito mal conservados, de aspecto se pode dizer miserável, a pedirem mestre de obras e demolição. Pobres reliquias por onde passaram muitos veraneantes e banhistas cujos nomes se perderam na nossa memória e de onde emergem apenas os de Henrique Lopes de Mendonça e Leon Appert, o primeiro oficial de marinha, poeta, dramaturgo e romancista, o segundo, comerciante e pintor. Hoje no «Matilde» está instalado um restaurante e pensão, com o tipo de retiro, entre cerrada folhagem e flores, bons dias e rosas; no «Leonor» reside um dos empregados mais antigos da Fábrica dos Fermentos, o motorista sr. Nabais. Todas estas residências, como dissemos em número de catorze, chalés ou achalezados, têm quatro fachadas. Rodeia-as um espaço ajardinado, têm uma serventia para a Rua Policarpo Anjos e perderam um pouco do espaço que primitivamente tinham na frente, para o alargamento da Estrada Marginal, e bem haja quem a todos beneficiou. Em tempos distantes, com uma população a viver em âmbito mais restrito, talvez mesmo se possa dizer, com o seu quê de aldeia, os passageiros dos comboios que diáriamente admiravam as casinhas independentes, tafulas nos seus arrebiques, risonhas pela presença dos seus proprietárias, com os seus jardins, os seus alisares e frisos de mármores e de azulejos com desenhos «arte-nova», torreões e terraços, não lhes chamavam chalés, mas os pombais da Cruz Quebrada. Nota de espírito inofensivo hoje esquecida.




  Com o rolar dos tempos mudaram os donos das vivendas e parcialmente também os seus aspectos; a avenida estreita, acanhada, poeirenta e tortuosa transformou-se em Estrada, Marginal, ampla, franca e monumental, e do passado resta, a quem pode recordar, a doce saudade e o sereno respeito pelos que passaram e fizeram da Cruz Quebrada ribeirinha o esboço do belo quadro voltado para a Tejo como ele é hoje. Aos chalés, monumentos desse passado pitoresco, desejamos longa vida.

O Sitio da Cruz Quebrada Notulas de Micro Historia, Gilberto Monteiro