domingo, 12 de novembro de 2017

Os «Chalets«» da Cruz Quebrada



 Os chalés da Cruz Quebrada e os do Dafundo, como os de toda a parte, constituem assunto da crónica de hoje. Merecerá. a pena falar de tal coisa? Os chalés marcam uma época na vida social aqui do sítio, como em toda a Europa - Chalé constitui o aportuguesamento da palavra francesa ‹chalet», que significa a modesta habitação dos montanheses da Suíça, feita em madeira muito rústica e inteligente para resistir ao tempo violento dos invernos alpestres. Depois o vocábulo generalizou-se a habitação elegante destinada a estágios de Verão em praias ou campos sem. atender a razões geográficas, artísticas ou higiénicas. Com o «progresso» a vivenda de prazer passou a ser o que se chama hoje uma habitação residencial. Quando ainda era novidade, o chalé constituia a ambição de todo o chefe de família que vivia com abastança, como actualmente é o automóvel. O ricaço africanista ou o brasileiro volvido à terra, o negociante de secos e molhados, como o industrial ex-operário, resistentes a toda a cultura de que ao precisaram para enriquecer, maculavam as lindas paisagens dos vales dos rios do Minho e do Douro, as arribas das nossas praias ou os plainos do Ribatejo, com os despropósitos da sua vaidade de pedra, cal e tijolo.  Assim também aconteceu no Dafundo e na Cruz Quebrada, à beirinha. do Tejo. Imaginemos o pai de família, feliz, compensado o seu esforço após uma longa vida de trabalho, proprietário dum chalezinho, ao cruzar um amigo, mal podendo esconder a sua pampórria a armar em generoso hospitaleiro:
— Olá, amigo, você se passar pela Cruz Quebrada bata ao ferrolho, tem lá uma pobre choupana onde há sempre lugar para os amigos. Os chalés que nós vemos de norte a sul do nosso País, construídos no fim do século XIX e nos primeiros anos de novecentos, são a projecção incolor e insípida da arte de construir, onde a incompreensão e o mau gosto se deram as mãos na desarmonia das linhas arquitectónicas com as da paisagem e nas da comodidade com a higiene. E hoje?
 A gracilidade da habitação do camponês suíço, a razão de ser de cada uma das suas peças arquitectónicas, defendendo dos frios e das neves, da luminosidade destas e das humidades, tudo equilibrado com a Natureza nas cores, nas condições higiénicas e na arte, tudo isto foi letra morta, para os mestres de obras de entâo que, como os de hoje, mancomunados com os homens de dinheiro, negam o Mestre.



 A comemorar essa época. lá estão esses edifícios onde não falta um torreão com o seu catavento servindo de pára-raios a ofender o Céu que tudo perdoa; lá estão as janelas redondas, as geminadas, as sacadas, os terraços e os mirantes e todas as fantasias que o construtor acéfalo pode produzir para satisfação do seu freguês endinheirado. As considerações produzidas atingem todo o prédio-moradia, com pretensão artística. Na nossa conversa de hoje a ordem do dia é citar as que, construídas na Cruz Quebrada, ainda subsistem. Alguns já desapareceram na voragem da renovação sob a égide do bota-abaixo e arriba «buildings». Quando ainda neste nosso sitio a Estrada Nacional nº 67, de Lisboa a Cascais, era ladeada por muros ou pelos sapais da praia, casa aqui, casa ali, restos de quintas nas encostas de Santa Catarina e no esteiro do Jamor, propriedades relativamente recentes de neo-fidalgotes da constitucionalismo em cruzamento mais ou menos perfeito com os «vieille roche», as terras começaram a sofrer a evolução mercantil a que nós assistimos actualmente por toda a parte. Nos costumes entrou a nova lei, vender a leira para construir, realizar dinheiro trabalhando o menos possível e passar ainda por generoso cidadão para quem a utilidade pública é miragem sagrada e a quem o Estado agradece prèviamante o serviço através da mais valia.
  Assim apareceram o Parque de Mira Torres, as casas da estrada com frente para o Parque, entre as quais a do Clube, as Colmeias, a «avenida.» que arrependida tomou o nome de Rua de Policarpo Anjos, e todos os arruamentos mais ou menos estrangulados que nós ainda podemos adivinhar entre a praia e as barrocas de Santa Catarina de Ribamar. Sobrou a melhor talhada, a tira que viria a ser a Avenida Ivens e é ai que ulteriormente se fará, o "achalesamento, o monumento imorredoiro das almas criadoras da urbanização da Cruz Quebrada. Do que está à vista não vale a pena falar; as canalizações de esgoto das habitações das Colmeias bastam para atestar o espirito do comerciante a impender sobre a generosidade do sociólogo, a usura de braço dado com a hipocrisia na eterna comédia da caridade.



 Destas linhas de arquitectura do primitivo aglomerado populacional cruz-quebradense, acanhadas e deselegantes, que poderia esperar-se da avenida que ia surgir como fecho frontal da faixa ribeirinha do Jamor até... talvez Algés? As asneiras continuaram, o jogo de interesses, a ganância e a licença de parceria com os abusos e os compadrios, tornaram impossível qualquer plano de interesse público e a avenida terminou onde foi construído o Aquário Vasco da Gama. Para culminar a obra faltava a heresia histórica de apor à estrada marginal, árida, poeirenta e engasgada por um talude e pelo caminho de ferro, o nome respeitável de Roberto Ivens.
 Evidentemente que não vamos falar aqui de todos os chalés que ainda hoje recordam e documentam a vida local desde há meio século. Citaremos apenas os que ainda hoje recordam e documentam a vida local desde há meio século. Citaremos e porventura faremos algumas referências aos desaparecidos. Começaremos na Travessa dos Bombeiros Voluntários e de lá até ao Jamor, são cerca de 300 metros com catorze edifícios.


 Para oriente já é Dafundo e nós não queremos sujeitar os vizinhos ao soalheiro da nossa curiosidade histórica. São catorze as vivendas que ocupam todo este último quarteirao da Avenida Ivens, a começar na Travessa doa Bombeiros Voluntários da Cruz Quebrada e a acabar na curva. Os números de polícia das respectivas portas crescem de oriente para ocidente, sendo o da casa da esquina, a primeira, o nº 67 e o último o nº 84.
 As quatro primeiras residências, talvez as mais modernas, têm a história mais confusa, mercê das variedades de donos que lhes não deixaram criar tradições. Auxilia-nos nas investigações o nosso amigo, o sr. José Cruz, velho, perdão, antigo residente do nosso sítio. A da esquerda, deve ter sido censtruida por um tal sr. Dias, ha muito desaparecido; sofreu várias modificações e foi de vários donos e da várias nacionalidades. Nunca, foi chalet!
 A seguir vemos ainda duas habitações, muito semelhantes e agradáveis de aspecto. Uma teve o nome de «Carracedo». Foram construídas e habitadas por dois merceeiros da Rua da Prata, galegos, amigos e sócios. Uma delas foi mais tarde propriedade do «yachtman» Seixas, que a habitou. A seu filho Dick deixou recordação de bom camarada e divertido desportista na «jeuneese doré» da época. Em uma delas houve um restaurante com bilhares, pertencente a Jaime de Sousa Sabrosa, que teve vida efémera. Estas duas construções não têm características de chalés. Segue-se-lhe nm modesto prédio de casas de três andares, sem pretensões genealógicas, nem arquitecturais. Lá. vive há. muitos anos o nosso amigo, o sr. Vieira, com a sua célebre colecção de bichos domesticados de que eu recordo os lindos falcões e a sua evangélica paciência para os criar. Nos andares superiores habita o também nosso amigo, o sr. Domingues, sua familia, os seus livros de heráldica e de numismática e os seus sonhos. Entramos agora na série dos verdadeiros «chalets», todos pimpões, com colunas, varandíns, balcões e arrebiques da barafunda arquitectónica colhida entre o serrano suíço e o «chateau» francês em miniatura.



 Eis o primeiro, o «Dinorah». Foi de Joaquim Pessoa, comerciante a político de ontem. Pertence à sua filha e herdeira, srª D. Dinorah Lobo, esposa do nosso velho amigo, o sr. engenheiro Aulanio Lobo. O vizinho imediato é o «Gabriela», que foi primiti-vamente de António Alves de Matos e depois do advogado dr. Jaime Gouveia. De habitação passou ultimamente a instalação industrial. Está com escritos para alugar há muito tempo. É um exemplo das grandezas passageira.
 Como é óbvio a fieira dos «chalets» não foi de construção simultânea. Houve talhões de terreno difíceis de impingir e, assim, há construções recentes como acontece com a que serve de residência ao sr. Gregório Fernandes. Não é «chalet». Tem linhas utilitarias simples e incaracterísticas e um... painel de azulejos bonito e oportuno que representa Camões a falar às ninfas do Tejo, as suas musas:

"E vós Tagides minhas, pois criado
Tendes em mim um novo engenho ardente."

 Esta vivenda Fernandes fez uma solução de continuidade na série de chalés que anunciámos e que vai recomeçar. Com o nº 78 na porta, eis o «Alice», sem protohistória. Depois o «Ana», cujo primeiro dono, um senhor Ferraz, o vendeu ao médico de boa-memória, o dr. Júlio Eugénio Roseira, cuja familia depois do seu desaparecimento se desfez dele para outro dono, o actual, que não sei quem é. Ao lado, imediatamente, está o «Laura», mandado construir pelo solicitador encartado Alfredo Aníbal de Mendonça Heitor, que o transmitiu por herança a sua filha, a srª D. Laura Heitor Bustorff. O vizinho contíguo é o «Óscar», realização do funcionário superior da CP Fernando Eugénio da Silva Lopes, cujo filho de nome Oscar justifica o nome do chalé, que ele herdou de seu pai e depois por seu falecimento transmitiu à senhora sua viúva. É hoje um sagrado vínculo de familia. Segue-se a «Vila Hortense», uma vivenda engraçadinha, talvez por não ter pretensões a chalé. Lá residiu um médico da marinha, o sr. dr. Salgueiro, que exerceu a sua profissão muito tempo em Macau, pelo que tinha na sua casa um rico e belo museu de loiças, móveis, charões, metais, etc, chineses. Confessamo-nos aqui grandes bisbilhoteiros, mas com a justificação que provém de admirarmos o seu bom gosto de coleccionador-artista. Perdoe-nos colega. Esta moradia foi vendida ao sr, Eduardo Dias Ferreira, que a transmitiu a outro médico que lá mora actualmente, o senhor dr. Ramos Faria.
 Restam da série as dois últimos, o «Matilde» e o «Leonor». São talvez os mais antigos, contemporâneos de um outro que foi demolido para corrigir o traçado da estrada marginal e se chamava Vila Fernanda. Estão muito mal conservados, de aspecto se pode dizer miserável, a pedirem mestre de obras e demolição. Pobres reliquias por onde passaram muitos veraneantes e banhistas cujos nomes se perderam na nossa memória e de onde emergem apenas os de Henrique Lopes de Mendonça e Leon Appert, o primeiro oficial de marinha, poeta, dramaturgo e romancista, o segundo, comerciante e pintor. Hoje no «Matilde» está instalado um restaurante e pensão, com o tipo de retiro, entre cerrada folhagem e flores, bons dias e rosas; no «Leonor» reside um dos empregados mais antigos da Fábrica dos Fermentos, o motorista sr. Nabais. Todas estas residências, como dissemos em número de catorze, chalés ou achalezados, têm quatro fachadas. Rodeia-as um espaço ajardinado, têm uma serventia para a Rua Policarpo Anjos e perderam um pouco do espaço que primitivamente tinham na frente, para o alargamento da Estrada Marginal, e bem haja quem a todos beneficiou. Em tempos distantes, com uma população a viver em âmbito mais restrito, talvez mesmo se possa dizer, com o seu quê de aldeia, os passageiros dos comboios que diáriamente admiravam as casinhas independentes, tafulas nos seus arrebiques, risonhas pela presença dos seus proprietárias, com os seus jardins, os seus alisares e frisos de mármores e de azulejos com desenhos «arte-nova», torreões e terraços, não lhes chamavam chalés, mas os pombais da Cruz Quebrada. Nota de espírito inofensivo hoje esquecida.




  Com o rolar dos tempos mudaram os donos das vivendas e parcialmente também os seus aspectos; a avenida estreita, acanhada, poeirenta e tortuosa transformou-se em Estrada, Marginal, ampla, franca e monumental, e do passado resta, a quem pode recordar, a doce saudade e o sereno respeito pelos que passaram e fizeram da Cruz Quebrada ribeirinha o esboço do belo quadro voltado para a Tejo como ele é hoje. Aos chalés, monumentos desse passado pitoresco, desejamos longa vida.

O Sitio da Cruz Quebrada Notulas de Micro Historia, Gilberto Monteiro